O Passageiro Clandestino
Metida numa caixa de cartão e enrolada em duas folhas de papel encontrava-se uma garrafa com um cartão onde podia ver-se uma breve mensagem escrita na letra bem delineada de Clarisse.
“Está cheia de água”, dizia o cartão, “todos aqui na escola bebemos dela incluin-do o seu filho, por que não experimenta? Se a nós não nos faz mal, também a si não o irá fazer! Isto é a nossa oferta que esperamos lhe faça bem e o ajude a recuperar o amor e o respeito do seu filho, que, ao perder a mãe, mais precisa de si”.
As letras começavam a tremer-lhe na mão e a diluir-se com os pingos das lágrimas que lhes caíam por cima. Sentia um aperto no peito provocado pela comoção, quem sabe se o primeiro sinal para um restabelecimento de princípios sãos que lhe devolvessem o respeito por si e pelos outros, e que perdera havia muito.
…E era uma rapariguita, uma boa colega do filho a dar-lhe aquela lição! Iria o seu rapaz perdoar-lhe o acto impensado de tresloucada selvajaria?…
Ao menos tivera sorte de encontrar tais amigos, pensou o homem deixando-se cair numa cadeira e escondendo o rosto nas mãos.
* * *
Segurando o cabo de aço da amurada, com os olhos fitos na linha do horizonte, onde o mar e o céu se uniam e as nuvens se acastelavam a formar um sem número de figuras grotescas, Agostinho pensava na sua terra, na mãe, em Clarisse e nos seus estudos.”O que iria ser a sua vida quando de novo voltasse à terra?”
Os salpicos das ondas formadas pela quilha do navio a cortar as águas, vinham por vezes orvalhar-lhe a fronte, os pingos escorriam-lhe sem destino pela face. Lambera um deles, frio e salgado, acre como o seu destino e as suas lágrimas!
– Vem, Agostinho, chamou a voz de Armando da porta do compartimento que servia de refeitório onde começavam a reunir-se os tripulantes para o almoço. Aqui o Sr. Luis preparou uma torta de maçãs para ti!
Olhando para o homem de caneco alto e branco com fortes bigodes, que tinha a seu cargo as dietas suculen-tas de bordo, onde todos eram bons comilões, o pequeno endereçando-lhe um sorriso de contentamento, agradeceu-lhe o carinho de que estava a ser alvo, em palavras que havia muito tinha aprendido de sua mãe:
– Obrigado, seja pela sua saúde e de todos. Nunca mais esquecerei a maneira como me têm tratado aqui!
Na rudeza da vida e trabalhos de bordo onde não existe tal género de singeleza e ingenuidade, as palavras do pobre clandestino, haviam tocado os corações dos marinheiros, amolecendo-os. Em cada um desses homens fizera um amigo.
Pedindo permissão, após o almoço, Agostinho fora visitar a casa das máquinas. Com certas restrições, os maquinistas encarregados daquele labirinto de motores e turbinas, receosos de que algo pudesse acontecer ao inexperiente observador, haviam-no autorizado, não o perdendo, porém, de vista.
Acocorando-se por vezes, com a atenção de um estudioso, Agostinho procurava relacionar os aparelhos em funcionamento com os conhecimentos que tinha deles, através das suas muitas leituras na biblioteca da escola.
Claro que a bordo, ou em qualquer instalação terrestre com usos diferentes, as má-quinas e as suas derivações serviam outros propósitos.
Essa primeira visita começou a multiplicar-se ao ponto de despertar a atenção dos oficiais de máquinas, que, uma vez por outra, interroga-vam o rapaz que lhes dava respostas, algumas das quais os deixavam surpreendidos pelos conhecimentos teóricos que o jovem demonstrava.
Na sala de jantar dos oficiais, o caso do pequeno clandestino e da sua preferência por máquinas foi levantado, tendo o comandante Ávila decidido conhecer melhor o passageiro novo a bordo.
– Então, o teu pulso está a melhorar? - começou o capitão, querendo dessa forma de interesse pessoal, pôr o rapaz à vontade.
–Está melhor, senhor, não tinha nada partido… Apenas um tendão magoado pela fivela do cinto… Obrigado!
– Quantos anos tens?
– Agora em Março vou completar doze anos!
(continua)
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Toronto,
24/Março/2003
Edição 773
ANO XXIII
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F. Feliciano de Melo
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