MESTRE CARLOS DE SANTO AMARO
Apesar de estarmos no início do novo século, ainda há muita gente que
recorre aos serviços dos endireitas.
Por outro lado os curandeiros vão caindo em desuso, porque hoje há médicos
suficientes para acorrer a contento aos desejos e cuidar das doenças que
enfermam as populações.
No tempo em que me criei, havia aqui nas Lajes do Pico dois homens que
percebiam de ossos, era um dom de Deus, e eram analfabetos.
Um deles era o Manuel Ermelindo Madruga e o outro era o Ermelindo Madruga,
ambos irmãos de sangue. Eram muito solicitados e lembro-me de que o Dr.
Campos que foi médico de clínica Geral e até cirurgião, durante mais de
quarenta anos nesta Vila e Concelho, a eles recorria para resolver muitos
problemas do foro ósseo. Há cinquenta anos não havia hospital e os
Ortopedistas eram pertença de outro hemisfério que não este, abandonados
que estamos em Ilhas no meio do vasto Oceano Atlântico Norte.
Assim aqueles que tinham alguma aptidão para consertar pernas e braços, os
chamados ENDIREITAS, usavam de um estatuto quase de médico e eram muito
solicitados, como ainda hoje acontece.
Meu bisavô Ermelindo dos Santos Madruga, que por essas Américas andou atrás
de baleias, foi talvez o pioneiro nesta classe, se não me falha a memória.
Os dois filhos acima referidos seguiram-lhes as pisadas e foram colmatando
as brechas por ele deixadas. Há inclusivamente um episódio que atesta o
altruísmo destes indivíduos que trabalhavam graciosamente. Contava minha
avó que estando meu bisavô no leito de morte alguém pediu para ser visto
pelo Sr. Ermelindo, porque tinha um torcicolo. Como O ouvido do moribundo é
sempre e segundo os entendidos o derradeiro sentido que fenece e ele,
apesar de estar numa madorna, logo apurou o ouvido e deu um berro apelando
às forças que ainda possuía e pediu para que lhe trouxessem o doente para
perto da cama. De seguida pediu para o sentarem na borda da mesma e mandou
o paciente sentar-se entre os seus joelhos, de costas viradas para ele.
Colocou-lhe a cabeça entre as pernas e deu um jeito com o joelho duma delas
e lá foi o pescoço ao seu lugar, acompanhado dum impropério proferido pelo
paciente. Faleceu dois dias depois, com a consciência tranquila do dever
cumprido.
Todo este aranzel de palavreado serviu somente para preparar o leitor para
a abordagem que vou fazer a outro homem, que sendo de Santo Amaro é
conhecido em toda a Ilha. Trata-se de CARLOS TEIXEIRA DE MELO, mais
conhecido por Mestre Carlos de Santo Amaro, homem conhecido talvez pelas
cinco partidas do Mundo e um habilidoso e consciencioso massagista e porque
não dizê-lo, ortopedista e fisioterapeuta. Hoje em dia e apesar de todos os
preconceitos existentes entre a classe médica, ainda há alguns médicos que
a ele recorrem muito em segredo, para solver certas situações relacionadas
com os ossos ou suas articulações. Inclusivamente já houve clínicos que
usufruíram dos seus serviços em proveito próprio. Mas afinal quem é o
Mestre Carlos?
É um homem simples e bem disposto, viuvo e pai duma filha, que vive numa
linda casa no Pesqueiro Alto em Santo Amaro, a freguesia mais célebre dos
Açores, porque não há desde há longos anos um único analfabeto e é o único
estaleiro das Ilhas do Grupo Central do Arquipélago, apesar do declínio da
pesca do atum e da perda das 200 milhas impostas pela Comunidade Europeia a
Portugal. Mas o mestre Carlos é o homem dos sete ofícios, como por aqui se
diz. É massagista, ortopedista, fisioterapeuta, artesão de nomeada,
agricultor, electricista, canalizador e pintor, isto e como ele diz só das
portas para dentro. Mas já tocou na Filarmónica de Santo Amaro e durante
muitos anos acompanhou a equipe de futebol do Operário, quando em
deslocações pela Ilha, no tempo em que ainda havia futebol. Infelizmente
hoje o campo foi assoreado e parece que tudo ali ficou. Quando alguém faz
um entorse ou tem desconfiança de ter partido algum osso do corpo a ele
recorre, porque por estes lados o único médico que temos é mau e vaidoso e
o seu curriculum deixa muito a desejar, pelas asneiras e inutilizações que
já provocou em diversos pacientes que a ele recorreram. Assim sendo, a fama
já ultrapassou fronteiras e é exemplo disso a presença dum casal de
alemães, ele médico e ela doente da coluna, desenganada pelos médicos em
toda a Europa e até nos Estados Unidos, que nunca deram com o mal, mas num
dia ao visitarem o Pico, alguém lhes mencionou o nome de Mestre Carlos e
que talvez ele conseguisse algo. Perante o desespero do casal, lá se
dirigiram e depois de muito trabalho e pesquisa através do tacto, o Mestre
Carlos que na freguesia é conhecido como o Carlos da Felícia, tocou em dois
pontos nevrálgicos e disse através da mímica, que só poderia no outro dia
talvez tentar resolver a situação. No outro dia e à hora aprazada, lá
estava o casal, ele todo desempoeirado e ela numa cadeira de rodas,
acompanhados pelo taxista da véspera.
Depois de novamente a tactear com os
dedos que mais parecem tenazes, começou a fazer certos exercícios, como só
ele muito bem sabe fazer e um a um, foi colocando no seu lugar os ossos que
provocavam a invalidez da inditosa senhora. Findo o trabalho, Mestre
Carlos, novamente, colocou a mímica ao serviço da ciência e mandou que ela
se levantasse, porque estava curada. O marido, ficou estupefacto com a
ordem dada e apesar duma certa relutância lá ajudou a esposa a libertar-se
da cadeira. Muito calmamente e sem qualquer esgar de dor a senhora
levantou-se e começou a andar, vivamente emocionada. Depois deste feito,
idênticos a tantos outros, porque já foram muitos milhares os pacientes que
por lá passaram, dos quais me incluo, o médico queria pagar-lhe, mas o
mestre Carlos, sempre sorridente e humilde disse que não era nada e que
estava ali para ajudar os outros.
O médico foi para a Alemanha, mas já
voltou algumas vezes ao Pico e a Santo Amaro, para manifestar o seu
reconhecimento. Um dia Mestre Carlos recebeu um aviso para levantar num
transitário, um volume vindo da Alemanha. Reconheceu o remetente, mas qual
não foi o seu espanto quando ao desembrulhar o mesmo deparou com uma maca
amovível, daquelas usadas nas Clínicas de Fisioterapia. Ainda hoje é muito
usada para certos casos, mas na maioria deles utiliza apenas a cadeira da
cozinha. Ainda esta semana lá fui utilizar os seus serviços e "apanhei-o"
no quintal, de máquina às costas a sulfatar a vinha. De pronto deixou tudo
e veio socorrer meu cunhado, que sofreu há meses um grave acidente de
viação, mas nada conseguiu fazer, porque os ossos solidificaram
defeituosamente.
É um hábil e entendido agricultor e notámos à saída da
porta da cozinha, na horta da casa, como por aqui se diz, caseiras de
melão, couves, melancias, malagueteiras, nabos, alfaces e tomateiros. É
também um artesão afamado e talvez o único que na Ilha ainda constrói as
miniaturas dos botes baleeiros, para além de muitos outros artefactos, que
durante anos foram utilizados na lavoura. Conversar com este homem, dá-nos
sempre imenso prazer porque é um grande anfitrião e faz o favor de
retribuir a amizade que nutro por ele. É mais uma figura ímpar nesta Ilha,
pelo seu carácter, pela sua lhaneza de trato e pela sua simplicidade, por
isso hoje aqui o trouxe, ao conhecimento dos nossos leitores.
Até para a semana, se...Deus quiser!